FÓRUM CULTURAL MUNDIAL
BRASIL 2004
São Paulo - 02 de julho


Abdias - 90 anos
Um brasileiro do Mundo
Lançamento Campanha Abdias Prêmio Nobel
(SEPPIR)
Algumas considerações sobre a obra do Prof.Abdias do
Nascimento.

Querido Professor Abdias
Querida Elisa
Senhoras e Senhores
Meus irmãos e minhas irmãs africanos presentes

A obra do Prof.Abdias é complexa e ampla no espaço-tempo; uma obra que, diria, está ainda à espera de seus críticos e avaliadores. Se eu li alguns livros e textos dessa obra, não foi com a intenção de me tornar seu crítico. Os li em busca de algumas inspiração e informações que me ajudaram no meu processo de conscientização e de compreensão das realidades do negro na sociedade brasileira. A sua contribuição na minha atuação na academia e no movimento negro foi muito importante.
O primeiro livro que li, antes de conhecer pessoalmente o Prof. Abdias foi o "Sitiado em Lagos", que ele escreveu como denúncia e protesto às manobras orquestradas pela representação oficial (Itamaraty) do governo brasileiro, impedindo-o de falar em nome da Comunidade Afro-descendente (do seu povo), durante o II Festival Mundial das artes e culturas negras e africanas, em Lagos, Nigéria, em 1977.
A leitura do "Genocídio do negro brasileiro" me abriu os olhos sobre um processo de duplo genocídio que visava através da miscigenação e da imposição de uma cultura hegemônica euro-cêntrica, a exterminar física e culturalmente o negro da terra que ele construí. É o chamado processo de embranquecimento.
No "Quilombismo", o Prof. Abdias aprofunda as questões enunciadas no "Genocídio do negro brasileiro", analisando os mecanismos e as armadilhas do racismo à brasileira: um racismo sutil, difuso, evasivo, camuflado, porém muito eficiente em seus objetivos. Um racismo que, emprestando as palavras de Elie Wiesel, Nobel da paz, age como um carrasco, matando sempre duas vezes, a segunda vez pelo silêncio. No mesmo livro, ele aponta e analisa as estratégias de resistência do negro, tanto no plano coletivo como no individual, graças às quais ele conseguiu sobreviver física e culturalmente, e mais do que isto pôde modelar a própria identidade plural brasileira.
O "Negro Revoltado" é dedicado em grosso modo aos conteúdos das Convenções, Semanas de estudos e I Congresso Negro Brasileiro promovidos pelo Teatro experimental do negro no Rio de Janeiro, em 1950. O objetivo desse livro publicado 30 anos depois da realização do Congresso é mostrar, entre outros, a inércia, a imobilidade e a falta de vontade política dos dirigentes brasileiros para incrementar políticas públicas capazes de enfrentar as questões e propostas de mudanças apontadas naquele Congresso.
No "Combate Ao racismo", são reunidos discursos e projetos apresentados e defendidos pelo Prof.Abdias, durante seu mandato como Deputado federal, para combater o racismo e propor mudanças que possam devolver aos brasileiros negros e índios, o exercício de sua plena cidadania. Alguns desses discursos dizem respeito à solidariedade na luta de libertação dos povos da África Austral (Namíbia, Zimbábue e África do Sul).
Encontram-se nesse livro, textos de dois projetos de lei: -(1) o projeto que considera o racismo como crime de Lesa-Humanidade e -(2) o projeto de lei que dispõe sobre ação compensatória em benefício do negro enquanto maior vítima do racismo no Brasil. Observa-se que vinte anos se passaram entre este projeto e o início do debate sobre cotas pró-negros no ensino universitário público brasileiro.
Durante seu mandato de Senador da República, o Gabinete do Prof. Abdias criou duas revistas importantes - a "THOT/Escriba dos deuses" e a "Sanfona", ambas visando o resgate da memória e do pensamento dos povos africanos e afrodescendentes e a introdução da África e da cultura dos afrodescendentes na Escola brasileira. As duas revistas oferecem textos, imagens e ilustrações que enfoquem uma África autêntica e suas contribuições na civilização universal, além de apresentar uma história do negro brasileiro que rompe com os conteúdos da historiografia colonial e racista que até agora permeiam ainda em muitos livros e materiais didáticos. A lei 10.639 que torna obrigatório o ensino da história do negro e da África no ensino básico brasileiro pode ser considerada como uma consagração da proposta do Senador Abdias nas revistas Thot e Sanfona.
A lista de nossas resenhas incompletas sobre a obra do Professor Abdias poderia ser mais longa se não fosse a nossa incompetência. Alias, não sei quantas mutilações já teria cometido neste instante, ao querer sintetizar o pensamento dessa montanha humana de 90 anos de vida e de luta. A lista de suas obras é realmente grande, pois deixamos de falar entre outros de:
- O Brasil na mira do pan-africanismo
- Teatro experimental do negro
- Sortilégio
- Sortilégio II
- Drama para negros e prólogo para brancos
- Orixá: os deuses vivos da África, etc.
Se Luiz Gama foi o negro libertário de sua época, o Professor Abdias é o negro libertário da nossa época, pois ambos encarnam dois tipos de libertação complementares do negro, a libertação do regime escravista caracterizado pela oposição mestre/escravizado e a libertação do sistema racista no qual a oposição mestre/escravizado foi substituída pela oposição branco/negro visando a manter o status quo.
Da mesma maneira que o Sr. W.E.B. Dubois, pai do Pan-africanismo, dizia falando dos negros nos Estados unidos que "nós também somos a América", o Professor Abdias passa também a idéia de que "os negros brasileiros são também o Brasil", embora privados de sua plena participação no produto social nacional e na política do país, daí a justificação de sua luta incessante. Mas ele não ficou preso ao seu Brasil, pois o sentimento da solidariedade que é uma das palavras-chaves da identidade o obrigou a participar de todos os movimentos libertários das diásporas africanas nas Américas e de todos os movimentos de idéias que desembocaram nas independências africanas: o Pan-africanismo e a Negritude.
Quando o primeiro Congresso pan-africano foi organizado em 1900 por Dubois, o Professor Abdias ainda não tinha nascido. Mas já tinha 31 anos quando foi realizado o Congresso pan-africano de Manchester, Inglaterra, em 1945 e 44 anos quando o Dr. N`Kwamé Nkruma, primeiro Presidente do Gana independente, organizou o primeiro Congresso pan-africano do continente africano na cidade de Acra, em 1958. Mas ele fez questão de estar presente no congresso pan-africano de Dar-es-Salam, em Tanzânia, organizado em 1974, pelo presidente Julius Nyerere. As fotografias desse congresso o mostram sentado ao lado de San Njona, Presidente da Swapo que se tornou primeiro Presidente da Namíbia independente.
A influência desses movimentos se reflete em sua obra onde se percebe a busca constante da construção da solidariedade com os africanos espalhados em todos os continentes, visando a realização de três objetivos principais: buscar o desafio cultural do mundo negro - protestar contra à ordem colonial - lutar pela emancipação de seus povos oprimidos e lançar o apelo de uma revisão das relações entre os povos para que se chegasse a uma civilização não universal como a extensão de uma regional imposta pela força - mas uma civilização do universal, encontro de todas as outras, concretas e particulares. Aimé Césair, poeta da negritude resume esta última em três palavras-chaves: identidade, fidelidade, solidariedade. "A identidade consiste em assumir plenamente, com orgulho, a condição do negro, em dizer, cabeça erguida: sou negro. A palavra foi despojada de tudo o que carregou no passado, como desprezo, transformando este último numa fonte de orgulho para o negro. A fidelidade repousa numa ligação com a terra-mãe, cuja herança deve, custe o que custar, demandar prioridade. A solidariedade é o sentimento que nos liga secretamente a todos os irmãos negros do mundo, que nos leva a ajuda-los e a preservar nossa identidade comum". Lendo atentamente a obra do Prof. Abdias, não temos dúvida nenhuma sobre o encontro de suas ideais com as dos poetas, romancistas, etnólogos, filósofos e historiadores da negritude e do pan-africanismo, o que faz dele um cidadão do mundo.
Diria, sem exagero, que o Professor Abdias, era uma pessoa adiantada em relação ao seu tempo, pois além de enfrentar uma questão tabu em sua juventude, o racismo à brasileira, percebe-se que todos os assuntos sobre os quais a sociedade brasileira está se debruçando hoje e que alguns consideram como novidades já estavam em debate em suas obras há quase meio século. Exemplos: discursos sobre identidade, multiculturalismo, ação afirmativa, plena participação do negro na sociedade brasileira, etc.
No plano internacional, o tema da solidariedade muito caro a todos os africanos do continente, das ilhas e da diáspora, o coloca ao lado de Dubois, Henry Sylvester Williams, Marcus Garvey, George Padmore, N`Kwamé Nkruma, Hamed Sekou Touré, Julius Nyerere, Cheikh Anta Diop, Léopold Sedar Senghor, Aimé Césair, Patrice Émery Lumumba, etc.
Na liderança negra, ele se aproxima também de Luther King no sentido de que sempre defendeu uma integração pacífica, sem ódio e revanchismo dos descendentes de africanos na sociedade brasileira, o que faz dele um grande pacifista cuja voz demorou de mais para chegar aos ouvidos dos dirigentes brasileiros. O ouviram bem mesmo?. Ele se aproxima também de Malcohn X pela sua luta na defesa da dignidade, do orgulho e da autonomia do pensamento negro. Como intelectual, ele se destaca pela denuncia e pelo protesto que correm em filigrana em toda sua obra, fazendo dele um militante incansável e incorrutível. Mais do que isso, sua obra não foi construída para projeção na carreira acadêmica, apesar de ter sido Professor nas universidades americanas. Não é uma obra contemplativa, pois além da análise e da reflexão crítica da sociedade racista brasileira, ela arrisca e aponta alternativas de ação para mudança e transformação da sociedade.
Costumo repetir que peguei o bonde andando. Quem pega o bonde andando nada deve ensinar aos que o pegaram no ponto de partida, mas sim observar muito, escutar e aprender com os que o precederam. Visto deste ângulo, a obra do Prof.Abdias do Nascimento me ensinou muito e ainda ensinará muito para as futuras gerações brasileiras. Ele cumpriu seus compromissos com seu povo e sua comunidade negra de origem, deixando para a posteridade lições de vida, de luta sem treva e de persistência. A sua obra, como disse bem no início, ainda está à espera de seus críticos e avaliadores. Talvez, isto possa ser visto com um tributo que deveríamos lhe render um dia, pouco importa onde ele estiver, neste mundo dos mortais ou no dos imortais ancestrais.

São Paulo, 03 de julho de 2004.

Kabengele Munanga.