OU DANTE OU NADA

Pois, éramos seis. Fomos armados cavaleiros quando aquele grupo de adolescentes, numa praça de Buenos Aires, resolveu queimar em praça pública tudo quanto até então escrevera, num pacto que se chamou "Pacto del Victoria", do nome do local em que nascera. Todo o compromisso do pacto foi escrito numa única linha: - "Ou Dante ou nada". Por isso, queimaram-se todos os versos da "juvenilia". Não teríamos o direito de escrever o já escrito, de dizer o já dito. A rompante legenda adolescente nos sagrou cavaleiros da Senhora Poesia, da Senhora Musa. Passamos a chamar-nos por um nome secreto. Éramos a "Santa Hermandad de la Orquídea". A guilda órfica navegou todos os continentes e tentou lavrar todas as glebas do saber e do fazer poético. Éramos seis: - Efraim Tomás Bo, Godofredo Iommi, Juan Raul Young, argentinos, e brasileiros Abdias Nascimento, Napoleão Lopes Filho e este vosso cantor. Dois de nós já partiram para a eternidade. Em nome da fidelidade ao absoluto, jurada no "Pacto del Victoria", Abdias Nascimento consagrou todos os seus alentos na vida, como pintor, como teatrólogo, como ensaísta para a ressurreição de sua raça negra, instrumentando sua luta na ação política e na cátedra universitária. É doutor e Senador da República, mas tudo em nome da fidelidade àquela busca do absoluto que nos uniu na Santa Hermandad de la Orquídea. Godofredo Iommi é hoje o poeta maior da língua espanhola neste século. Raul Young abriu caminhos novos na poesia, no teatro e no cinema da Argentina. Napoleão pronunciou um voto religioso pelo qual se fez Cavaleiro da Virgem, que já o levou para a eternidade, depois de dele ouvir na terra a mais bela poesia religiosa de nossa língua. Efrain, que sabia tudo e o contrário de tudo, depois de uma vida rilkeana e às vezes dionisíaca, está já agora na mão de Deus, na Sua mão direita, como queria o poeta. Parte de sua obra foi publicada por nós, na Universidade Católica do Chile. Também por esse caminho, venho de longe, de muito longe, da adolescência da Santa Hermandad de la Orquídea. Conheci para sempre a castidade e o amor das Musas, a que sou fiel, "ego scriptor" - como se qualificava Ezra Pound, diante dos juizes ignorantes e dos carcereiros broncos do exército de seu país. Aqui estou também eu: "ego poeta". Pois, poeta sum".

Trecho do discurso de Gerardo Mello Mourão ao receber o grau de Doutor Honoris Causa na Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 25 de maio de 1993.
http://www.secrel.com.br/jpoesia/mello05.html

Navegar é preciso

A Santa Hermandad de la Orquídea (...) já fizera, desde 1940, a navegação mediterrânea e a das águas marítimas e fluviais do Brasil e do Prata, tomando caminhos de bandeirantes e navegadores dos dias aurorais da invenção do mundo nosso. Andamos, escoteiros ou em bando, os caminhos de Raposo Tavares, Borba Gato e Fernão Dias, entre Piratininga, Paraná, Santa Catarina e São Pedro do Rio Grande do Sul, países missioneiros aquém e além fronteiras, a Banda Oriental, a Argentina e o Paraguai, o país das Gerais, a beleza dos Goiazes do Anhanguera e as catas dos Cuiabás. A pé, a cavalo, de canoa e de avião, repetimos os caminhos da Casa da Torre, entre a Bahia e o Piauí e os caminhos de Pedro Teixeira, de Belém ao Amazonas, ao Acre, ao Amapá, fronteiras da Guiana, à Colômbia e o Equador. Desembarcamos como Pero Lopes nas praias de Pernambuco, da Bahia, do Siarah Grande, em todas as angras do país do Nordeste, Sergipe, Alagoas, Rio Grande, Paraíba do Norte, o Piauí e o Maranhão e navegamos as serras e os sertões, até o Raso da Catarina, nos rastros de Canudos, por engenhos de cana e vilas da guerra holandesa e das insurreições dos primeiros fazedores de pátria. A segunda estrofe da aventura começou pelo Chile, desceu à Patagônia argentina, subiu pelos mares costeiros, pelos desertos de Atacama, Coquimbo, Copiapó, Arica e Tacna, e pelos caminhos dos Andes do Peru, Pucalpas desoladas, Bogotá, comarcas, selvas e serras da Colômbia e as avenidas de neve do altiplano boliviano e a Venezuela de Bolívar. Nesta anábase e catábase da América tomou parte um bando de poetas, pintores, escultores e arquitetos. A viagem foi documentada numa preciosa e inesquecível bitácula, um diário de bordo da navegação terrestre por vários paises, em que todos os navegantes deixaram escritos textos de um memorandum épico-lírico dos achamentos, da mera invenção, dos chãos andados e estimados. Os peregrinos dessa navegação por tempos e espaços novamente inventados deram testemunho escrito da romaria continental, reunido num poema chamado "Amereida", partitura poética guardada num raro livro do qual se tiraram apenas algumas dezenas de exemplares.

Trecho de depoimento de Gerardo Mello Mourão sobre seu livro A Invenção do Mar (Nova Fronteira, 1998).
http://www.secrel.com.br/jpoesia/gmm01.html